sexta-feira

Caminhos de Santiago - Etapa 10 (35km) ou "o que é bom acaba depressa"



A noite foi mais ou menos tranquila para mim. Deitamos cedo. A vantagem de dormir num albergue exclusivo para peregrinos é que a hora do silêncio é sagrada – 21h estava tudo num alvoroço, na converseta e 21h30 estava tudo deitado a tentar dormir. Acordei muitas vezes, talvez por estar em pulgas com a última etapa. 
Acordamos mais cedo do que o habitual, tipo 5h30h. Como nós, quase todos os outros tb. É giro ver o reboliço da malta a preparar-se para arrancar para mais uma jornada. Mais uma jornada? Não … esta é a última jornada, é a recta da meta J
lindoooo...

Saímos bem de noite … relembro o episódio daquele domingo longínquo, há 10 dias atrás, quando estava a preparar a minha mochila … “achas que leve frontal???” … “nah … não vamos caminhar de noite!!!” … há que confiar na malta que tem experiência nestas andanças J 
Fomos dos últimos a sair … mesmo sem dores provocadas pelas bolhas elas estão lá e agora não descuro tratar dos pés antes de os colocar no caminho. 

tal e qual...

Ainda fomos ao mesmo tasco do jantar da noite anterior tomar um pequeno-almoço forte antes de arrancar para a derradeira jornada. E que jornada vai ser … ainda não sabemos, mas o dia de hoje vai ser a cereja no topo do bolo J

Vamos embora … Santiago de Compostela, aqui vamos nós!!! Mal saímos do café, uns 200m mais à frente o caminho leva-nos para uma zona de trilhos, terra e pedra, a descer … por entre uma floresta. Luz não existe, se não fossem as lanternas dos nossos telemóveis não víamos a mão à frente dos olhos. 

Tinha trovejado e chovido durante a noite. Estão a ver aquele cheirinho a chuva na terra seca? E os pingos de orvalho em todas as plantes que tocávamos? A boa disposição reinava. Depois de passarmos um casal (penso que pai e filha polacos) estávamos completamente sozinhos no escuro. Luz não existe, se não fossem as lanternas dos nossos telemóveis não víamos a mão à frente dos olhos. 

Eu disse sozinhos? Humanos não havia mas o que não faltava era companhia de animais nocturnos, especialmente aqueles que estavam a aproveitar a humidade que aquela chuvinha da noite tinha trazido de oferenda. E estava abafado … rãs eram mais que muitas – tínhamos que ter cuidado para não as calcar … muitas fugiam mas também havia umas bem atrevidas. Não sei se sabem, mas aqui a malta gosta de animais J

Ainda andamos uma horita até que aparecessem os primeiros rais de luz. Atravessamos algumas aldeias e em sentido contrário passaram vários caminheiros que deviam ir para alguma festa. 








E com isto chegamos à periferia de Padron, que é a última grande paragem do percurso clássico antes de chegar a Santiago. Segundo os mapas faltam agora 24km.


Gostamos muito de Padron, do centro da cidade. Tudo muito arranjadinho, prédios antigos onde predominava o granito. Ainda havia pouco movimento, as pessoas ainda estavam a acordar, as lojas a abrir. Saímos um bocadinho da rota para espreitar as ruas paralelas. E bemdita a hora em que decidimos tomar um café.



não somos todos assim :)


Por sorte encontramos um tasquinho – Dom Pepe – mesmo ao lado da Igreja principal de Padron onde se pode ver a pedra onde amarraram a corda do barco que transladou o corpo de Santiago vindo da Palestina. Antes do café visitamos a Igreja e foi uma senhora muito simpática que nos explicou a história de pedra.




é esta a dita pedra …

Voltando ao Dom Pepe … é um tasco que vive dos peregrinos. Um one-man-show do Pepe que existe mesmo J … o Pepe é grande e forte e mal colocas um pé dentro do tasquinhos és cumprimentado de forma efusiva e sentes-te em casa. Mesmo antes de pedir alguma coisa o Pepe já está a dizer que temos que escrever no livrinho dele e aponta para uma montanha de livros já preenchidos com milhares de mensagens de outros peregrinos que ali passaram. O tasco está cheio de coisas que os peregrinos deixam para trás, uma decoração super colorida que inclui muitos adereços portugueses – inclusivamente alusivos à Super-Bock e à Sagres J 


Tomamos um café e comemos um croissant – e escrevemos no livro do Pepe que chorou quando lhe pedimos para tirar uma foto com ele. Convidou-nos logo para trás do balcão apertado e no fim deu-nos um beijo na testa e um abraço forte. Lembro-me de ver a Dora a desaparecer entre os braços enormes do Pepe J … mas no fim cobrou-nos 5 € pelos 2 cafés e 2 croissants JJJ … isto não é a Santa Casa da Misericórdia J … se um dia passarem em Padron é obrigatório passar no Dom Pepe.
Pepe … a figura típica ali do sitio…

Quando saímos enganamo-nos no percurso e atravessamos o rio para o outro lado. Não faz mal porque assim tivemos oportunidade de ver outra Igreja e a Fonte da Carmen. Quando deixamos de ver setas voltamos para trás e lá seguimos o percurso correcto.



Estávamos no ataque final a Santiago. Seriam ainda muitos km, por estradas nacionais, caminhos entre campos, florestas, atravessando muitas localidades.  Estavamos bem, muito bem até. De pernas, de pés, cheios de boa disposição o que permitiu apreciar como deve ser os sítios por onde íamos passando – como deve ser J


esta era super simpática ...

hidratar sempre ...


este tinha a mania que era ruim...


e pronto… só faltava uma Maratona de Roma (pensávamos nós)


e abastecer … sempre...


Até que a ca. de 7 ou 8km de Santiago nos deu aquele flash de querer acabar a etapa o mais rapidamente possível. Estávamos muito bem e imprimimos um ritmo verdadeiramente suicida … uns 6km por hora ou mais. O terreno agora ou subia ou descia, mas não desarmávamos, mesmo com a Dora já a ficar com os pés muito massacrados … tá quase. Aquilo é que foi passar peregrinos concorrentes J … 5km, 4km, quando esperamos ver a placa dos 3km aparece uma placa a dizer 7km e uns trocos … what??? … caiu-nos tudo, a sério … agora dá para rir. O mesmo sentimento de frustração quando vamos numa prova de trail, vamos todos rotos e descobrimos que temos um bónus de km para fazer. 

fodaice…. saí daqui há 10 dias, caminhei sempre para norte e estou cá outra vez???

bem … a tentar manter a boa disposição ..

Este aumento tirou-nos a garra com que vínhamos … passamos a arrastar a passada, especialmente a Dora que vinha mesmo à rasca dos pés. Eu bem tentava animar com tudo o que podia, até com cantorias que não é propriamente o meu forte, mas os km passavam muito lentamente.
Finalmente chegamos à periferia de Santiago de Compostela … já só deve falta 1 ou 2km. Os nossos olhos procuravam no horizonte uma cúpula conhecida mas ainda não aparece. Com isto perdemo-nos … por muita volta que dessemos não encontramos mais setas amarelas. Que se lixe, sigaaa até à Catedral…  não deve ser difícil de lá chegar.
já não falta tudo … 


Ali estava finalmente a cúpula … estamos perto. A Dora está desesperada dos pés … que guerreira, nada que eu já não soubesse. O aspecto franzino e pequeno esconde uma força da natureza com uma resiliência que só quem conhece. E com sono rosna J 

E finalmente ali está ela … 10 dias e mais de 300km depois chegamos à praça em frente à Catedral de Santiago de Compostela!!! Não suei dos olhos, ainda hoje não sei como porque estava com as emoções todas à flor da pele e quando assim é os olhos suam pra caraças J … mas isso não impediu que fosse invadido por um mar de emoções que não se explicam. Apenas se sentem …. 

Tempo de sentar na praça, tirar as sapatilhas, apreciar o quadro à nossa frente e ser invadido por um misto de sentimentos. Por um lado imensamente feliz por ter chegado, pelas jornadas deste nosso Caminho e tudo o que me deu – e foi tanto. Por outro lado triste por ter acabado tão depressa, sinal do bom que foi…


Escrevi o seguinte comentário como resposta ao pessoal que me estava a dar os parabéns pelo feito…

“Obrigado a todos. Não me dêem os parabéns pois não fizemos nada demais, apenas gozamos 10 dias das nossas férias de uma forma um pouco diferente do habitual. E foi tão bom 😊 ... aconselho a todos que tenham a possibilidade ... descobrir caminhos, locais, fazer percursos, Santiago, Fátima, Arouca, 1 dia ou 2 meses, 5km ou 300, com sentido religioso, por alguém, por ti ou a turiscar ... importante é fazer. Abreijos
Mantenho cada palavra J … estou ansioso por voltar ao Caminho, de Santiago ou outro qualquer.
Dorinha …. Obrigado por tudo J

10 comentários:

  1. Opahhhhh, esse foto final ;)

    Muito bom, meu caro.

    Parabéns pela viagem.

    Abraço

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  2. Muito bonito! Em especial a parte final.

    Foi um enorme prazer "acompanhar-vos" nesta aventura, imagino o que será fazendo fisicamente.

    Essas fotos das cabrinhas estão muito giras. E que dizer do café do Pepe?!?
    Quanto à foto das bolas... hum... não comento :)

    Grande abraço e beijinhos à Dora. Venha a próxima aventura :)

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    1. Obrigado pela companhia nesta longa viagem.
      Grande abraço João

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  3. Olá Carlos.
    Tenho seguido com atenção as tuas postas, sobre a aventura que é palmilhar - e fazer parte - dos Caminhos de Santiago. Há vários é um facto, mas o que interessa é aquilo que se coloca - e que se recebe - em/de cada jornada. Adorei os teus relatos, as fotos - algumas das quais bem familiares :) e a boa disposição, mesmo qd haviam mazelas.
    Já se passaram algumas semanas, mas muitos parabéns!

    Venham outros e bons caminhos!

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    1. Olá Sofia. Obrigado pela companhia!!!
      Beijinhos

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  4. Espetáculo.. Adorei fazer o caminho convosco. Grande abraço, pernetas.

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    1. :) … e nós gostamos da tua companhia. Aquele abraço

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  5. Grande jornada. Este fim de semana estive no Minho e vi imensos caminhantes e lembrei-me da vossa aventura.
    Parabéns por inspirarem o pessoal. Fiquei cheia de vontade de fazer algo assim!!

    **

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