Tá feito ... acabei os 144km da Ultra Caminhos do Tejo
deste ano. E modéstia à parte sinto-me muito orgulhoso por isso, não só pela
conquista deste objectivo pessoal e da maneira como o consegui mas também muito
por tudo o que tive oportunidade de viver nestas quase 25h que precisei para os
concluir. E estou grato, muito grato por tanto mas tanto apoio que tive, apoio
esse que autenticamente me carregou de Lisboa até Fátima J
Mas não foi fácil … nunca o é para empreitadas deste
género. Quem acompanha aqui este tasco sabe que a preparação não foi a melhor –
por vários motivos desleixei e sei que não fiz os mínimos. Depois a 1 semana do
grande dia fiquei doente, melhorei nos últimos dias e na última noite apanhei
frio (quem manda ser burro) e tive uma recaída.
Acordei adoentado na 6ª feira … dores no corpo, tosse e a
deitar para fora umas cenas esverdeadas por nariz e boca J … “tá bonito!!” … Vitamina C e empurrar o pequeno-almoço
(eu sem fome é muito raro).
Preparar toda a logística e siga para Fiães, almoço nos
paizinhos, apanhar o Nuno e siga para Espinho para apanhar o comboio para
Lisboa. Uma viagem tranquila em que praticamente dormi o tempo todo – quando chegamos
estava suado – fui à janela e levei com o sol sem me aperceber, o estado
adoentado fez o resto J … “tá bonito” …
só há um remédio para isto …
Cerveja fresca e conversas animadas … e foi assim que
passamos o tempo pelo Centro Comercial … e até passou rápido.
Eram 18.30h e fomos “cheirar” a zona da partida … a
organização (Mundo da Corrida) já lá estava mas ainda não entregava dorsais.
Entretanto sou abalroado por um gajo na rua e quando já lhe ia chegar a roupa
ao pêlo (sou um gajo muito violento J ) vi que era o
João Lima … tinha vindo fazer uma surpresa, dar apoio aqui ao Perneta e ao
primo dele (o Nuno é Lima tb J) … posso dizer
que já desconfiava, depois de um telefonema uns dias antes J … que bem que soube e é de valor … o João trocou a
estreia de Portugal no Mundial de futebol para dar uma abraço a um Perneta que
não sabia em que se estava a meter J
Grande João :)
Entre equipar nas casas de banho do Centro Comercial,
levantar dorsal, festejar o primeiro golo de Portugal, um bocadito de conversa
e umas fotos, o tempo passou rápido. Estava um vento forte, de frente.
Sentia-me bem melhor … as cevadas frescas e a boa companhia curaram-me J Chegou a hora … agora é que iam ser elas J
Pavilhão
de Portugal, Lisboa – Praia dos Pescadores, Santa Iria (km 19km)
Briefing e partida … uma partida simples, em companhia de
amigos e familiares para os ca.45 inscritos nesta epopeia. E ficamos logo para
trás … a ideia era poupar ao máximo nos primeiros 50km, tentar não entrar em
exageros desgastando o mínimo possível. Parece fácil na teoria.
Na prática não é … sentes-te fresco, a zona é bonita, vês
o grosso do pelotão a galgar e a afastar-se e tens que ter o discernimento
suficiente para não ires na onda. Não sei correr a 6,30-7min/km, ou seja, sei
mas desgasto-me mesmo muito … vou tentar intercalar corrida com caminhada … é
tudo plano … aquela táctica de correr nos planos e descidas e caminhar nas
subidas aqui não funciona nesta prova. Como vou fazer? Sinceramente não sei … é
aqui que entra a companhia … o meu amigo Nuno Lima*
*toda a gente que corre faz novos amigos devido à
corrida. Eu não fujo à regra. Mas tb tenho a sorte de ter reencontrado alguns
amigos de infância após muitos anos sem qualquer contacto. O Nuno é um mês mais
velho do que eu (tauuuu … J .. quem é o
velhinho, quem é?) … e a avó dele era vizinha da minha. E eu quando era miúdo
vinha de férias em Agosto e brincávamos juntos com outros miúdos mais ou menos
da nossa idade – numa rua com 300m havia uns 10 ou mais … era uma festa para
nós e um vê-se-te-avias para os nossos pais e avós – bons tempos, sair de casa
de manhã e voltar quando tínhamos fome J … estivemos
seguramente mais de 30 anos sem grande contacto até nos cruzarmos há uns anos
na Meia de Cortegaça. Daí a metermo-nos em muitas aventuras foi um passinho e
aqui estávamos nós – na maior de todas elas J … dois Pernetas mal
preparados mas com uma vontade de ferro em chegar a Fátima.
Juntos conseguimos ir gerindo aqueles primeiros km. Ora
corríamos, ora caminhávamos … “não te esqueças … comer antes de ter fome, beber
antes de ter sede” … sentir o corpo, antecipar as situações e ir avançando …
era essa a nossa táctica, a minha e a do Nuno. Gira a zona ao lado do rio
Trancão.
E até ao primeiro abastecimento na Praia dos Pescadores
(Santa Iria da Azoia) aos 19km formou-se um grupo com talvez uma dúzia de
malucos que iria ser a nossa companhia durante quase toda a viagem. Não que
fossemos juntos, mas íamos passando e ser passados ou então fazíamos ponto de
encontro nos muitos abastecimentos espalhados ao longo do percurso. Um deles
era o Rui Pinho que era dos poucos que eu conhecia pessoalmente de todo um
pelotão com muita gente experiente neste tipo de provas – e com o Rui Pinho não
há forma de ir sossegado J … aquilo é
histórias atrás de histórias, e claro que o tempo assim até passa melhor, pelo
menos enquanto se vai bem dispostinho … caso contrário tinha que o atirar ao
rio, ou saltar eu J.
Correu bem estas primeiras 2 dezenas de km – tb era
melhor J … a organização tinha “prometido”
fartos abastecimentos e não falhou. Muita diversidade, havia de tudo para todos
os gostos e feitios. E havia também algo que iria ser muito importante –
simpatia, palavras de incentivo e um carinho enorme por cada um de nós J Sigaaa para Vila Franca de Xira …
comes&bebes … a nossa especialidade…
Praia
dos Pescadores – Vila Franca de Xira (ca.32km)
A primeira parte corrida pelos passadiços de madeira
junto ao Tejo à luz do frontal. Deve ser bonito com luz do dia. Sinalização
impecável através de pequenos autocolantes reflectores. Não há como enganar –
além disso cada um de nós levava um localizador gps – estávamos a ser
monitorizados e caso saíssemos do percurso seriamos avisados via telefone.
Nunca chegou a acontecer connosco J
A segunda parte deste troço foi menos agradável … foi
corrido nas bermas de uma estrada nacional com muito transito de 6ª feira à
noite. Chega a ser perigoso e todo o cuidado é pouco.
Em Alverca andamos de escadas rolantes para passar a
linha de comboio J e fomos (eu e o
Nuno) tomar um café a um tasquinho – o dono do café tb corria, fazia uns trails
ali pela zona … passado um pouco aproxima-se outro gajo que tb corre, mas
provas de estrada e até já ganhou medalhas e tudo – não podemos sair dali sem
ir espreitar a vitrine cheia de medalhas e taças daquela malta. Impecáveis …
mas tivemos que pagar na mesma, pois amigos amigos, negócios à parte J … ao sair recebemos enorme ovação daquela dúzia de
pessoas que nos desejaram a maior das sortes. Acreditem que nos dão cá uma
força J
olhem ali ...
chegamos a Alvercagar ;)
aqui está o atleta que ganha tudo aqui na zona …
Alhandra e depois já em Vila Franca percorremos toda a
zona junto ao rio, uns km valentes de longas rectas de ciclovia antes de chegar
ao abastecimento com quase 35km nas pernas. Tudo tranquilo para já.
eu bem queria, mas não podia andar mais rápido ..
Vila
Franca – Azambuja (51km)
Noite escura, muitos km feitos em estradões em terra, com
piso bastante irregular, a maior parte ao lado da linha de comboio. Este troço
fizemo-lo sozinhos, ambos os dois J .. sozinho teria sido muito mais complicado.
Continuávamos a alternar corrida e caminhada vigorosa e o giro nesta parte foi
que um casal usava a mesma táctica, só que ao contrário … enquanto caminhávamos
eles corriam e vice-versa … resultado … estávamos sempre a passar uns pelos
outros J … dizíamos sempre “até já” J
Passamos a distância da Maratona com 5h20 mais ou menos o
que era excelente e não tardamos a chegar ao centro da Azambuja, onde dentro de
uma pequena casa estava instalado o abastecimento. Era a casa do João, um
membro da organização que estava ao serviço como cozinheiro – aqui além do
habitual havia bifanas e sopa. Mandei uma malguinha de sopa abaixo – soube que
nem gingas. Estivemos algum tempo neste local, a recuperar forças … as pernas
já davam sinal ao fim de um pouco mais de 50km. Oupas … Valada espera por nós.
Muito bom …
sopinha que faz bem, aquece a alma e tem sal ;)
Azambuja
– Valada (64km)
Depois de atravessarmos a estação de comboio da Azambuja
começamos a correr … noite escura, alcatrão em excelente estado, rectas enormes
que felizmente não vemos. Agora sei que exageramos … não consigo saber ao certo
mas devemos ter corrido uns bons 3km seguidinhos a bom ritmo o que desgastou …
os músculos posteriores das coxas já davam bem sinal – mas havia algo que me
estava a preocupar mais – os calcanhares, ambos os dois J … sentia que se tinham formado bolhas, mas como não
incomodava assim tanto não liguei nenhuma.
E foi com uma 2ª parte deste troço com mais caminhada do
que corrida que chegamos a Valada, seriam 4.50h da matina … a primeira barreira
horária desta prova era aqui e estávamos com 40min de vantagem. Demoramos uma
boa meia hora, entre abastecer, mudar de roupa (eu só mudei camisolas) e
descansar. Mais uma vez bons abastecimentos e pessoal do melhor – atenciosos e
sempre com as palavras certas para connosco.
Estava com as pernas bastante desgastadas e tinha sofrido
uma desilusão à chegada – enganei-me a fazer a minha sabatina para a prova e o
meu papelito dizia que havia massagem neste abastecimento. Mas não … era na
próxima em Santarém.
Valada
– Santarém (84km)
Estes ca. de 20km foram a parte em que me senti pior em
toda a prova. E até começou muito bem tirando as pernas muito moídas … saímos
do abastecimento já com os primeiros raios de luz a chegar o que deu para
voltar a ver o rio do nosso lado direito.
O esplendor da luz do dia abriu um excelente quadro que me fez esquecer
um pouco as dificuldades com que estava a nível de pernas.
chegou a luz do dia…
Um pouco mais à frente, a correr, vejo qualquer coisa
escrevinhada a giz branco no alcatrão … consigo ler “Força” e qualquer coisa
começada por “Pe…” … sinceramente pensei que fosse “Pedras” e associei ao Rui
Pedras que vinha um pouco atrás de nós … e decidi voltar uns 20m para trás para
avisa-lo, não fosse ele não se aperceber. Quando chego perto …. “Ó Nuno … não
acredito nisto … anda cá ver”
obrigado Sofia … muito obrigado …
J J J … espectáculo.
Alguém nos confins do mundo ribatejano tinha-se dado ao trabalho de escrever
estas palavras de incentivo no chão – para mim, para o Perneta J … conseguem imaginar a força que isto dá? A motivação
extra que é ler algo assim quando estás tão longe de casa? Pois é verdade …
Depois de arrancar a questão que pairava era “quem teria
sido?” e ao ver uma placa a indicar a localidade de Muge não tive dúvidas … foi
o Jorge Branco … não conheço mais ninguém por estas bandas. Coloquei a foto no
FB na hora e qual foi o meu espanto quando descubro que não tinha sido o Jorge
… tinha sido a Sofia do blogue Runner Wannabe que eu não conhecia ...
As pernas continuavam muito massacradas … demais para
esta altura, com apenas metade da distância total feita. Guardava para mim os
pensamentos negativos que me assolavam (como vamos aguentar o resto neste
estado, ainda falta outro tanto, está calor demais, não vou conseguir) … foi
sem dúvida nenhuma a pior fase da prova para mim. Pernas massacradas, moral em
baixo, num longo percurso em estradão irregular de terra batida com campos
agrícolas a perder de vista de um lado e de outro … ao fundo já se vislumbrava
Santarém, construída sobre uma colina … caminhávamos muito e corríamos pouco …
e parecia que Santarém se afastava, que estava cada vez mais longe …
Quando se faz uma prova destas com outra pessoa temos que
estar cientes que o ritmo será sempre ao ritmo do mais lento. E quando digo
mais lento refiro-me em cada momento da prova pois é normal que os altos e
baixos de cada um sejam em momentos diferentes. Em todos os km que fiz com o
Nuno até nisso senti uma sintonia incrível … quando ele estava mais em baixo eu
tb estava e quando se sentia bem eu tb me sentia bem … parecia combinado J … e nesta fase estávamos os dois em baixo, os dois
rabugentos porque os km não passavam e porque Santarém tinha sido construída em
cima de um monte que era preciso “escalar” … Scalabitanos do catano … não
sabiam construir a coisa cá em baixo??? J
Quando finalmente encontramos as primeiras casas vemos um
atleta a fazer um treininho em sentido contrário …. “ó páh … pega lá o meu
dorsal e vai fazer uns km por mim que eu já não posso” J … o moço deu a volta e juntou-se a nós … “venham daí que
eu conheço isto tudo e levo-vos lá acima” … e assim foram os últimos 2 ou 3km,
na companhia do bem disposto Artur, um dos organizadores da famosa Scalabis
Night Race e do Assalto a Santarém, entre explicações históricas e indicação de
trilhos, conversas sobre provas e o caminho que ainda nos faltava o tempo
passou relativamente bem. E assim chegamos ao alto de Santarém, ao abastecimento
dos 84km. Bela ajuda Artur … muito obrigado.
"é ali em cima" … grande Artur ...
chegamos … finalmente ...
Aqui notei o Nuno mais desgastado do que eu. “Nuno, temos
tempo … vamos descansar, massagem e vamos almoçar a um tasquinho por aí para
variar” … e assim foi. Sem pressas … massagem com o Rui (massagista de serviço),
impecável … ao nosso “obrigado” ele respondeu “não me agradeças assim, o melhor
que me podes fazer é cortares a meta em Fátima” … e é isto J … esta organização carrega-nos as baterias com isto, com
carinho e atenção, as palavras certas nos momentos certos, coisas que não se
compram J
Ainda assistimos à partida da Ultra dos 57km. Enchemos os
cantis de água e isotónico e seguimos umas duas centenas de metros antes de
encontrar um tasquinho que nos parecia simpático e alapamos o traseiro na
esplanada, à sombrinha J.
Santarém
– Santos (104km)
Umas minis frescas, uns folhados mistos e um café.
Refrescar na casa de banho e colocar o telemóvel a carregar. Uma senhora da
organização que estava ali a tomar o seu café assiste à cena … quando saem,
passam por nós dizem “isso está pago” … mas ???? mas ??? … éh páh … não era
preciso … mais uma vez insisto … levam-nos ao colo nesta prova J
Seguimos a caminhar para fora de Santarém para voltar a
apanhar os caminhos … está calor … espero que a massagem e o descanso tenham
efeitos positivos porque este último troço deixou-nos de rasto.
Como é a descer ensaiamos uns passinhos de corrida e a
coisa até se faz bastante bem J … agora corremos sempre (um trote entre os 6 e
os 7min/km) nos planos e descidas e caminhamos nas subidas.
A partir de Santarém o percurso é muito diferente que até
aqui. Depois de 84km de longas rectas e percursos planos (imaginem 200m D+
antes da subida para Santarém) chegam os troços com mais sobes e desces, menos
rectas, entradas e saídas em povoações e paisagens onde predominam verdes e
amarelos – esta segunda fase da prova é menos desgastante por isto, penso que
ao contrário deveria ser terrível – vir desgastado e enfrentar longas rectas
deve ser de morrer.
O maior problema agora era o calor … havia algumas sombras
do lado direito da estrada e, mesmo sendo com os carros nas costas, tentávamos
aproveita-las. A sorte era o ventinho que se fazia sentir … o que foi uma
dificuldade extra durante a noite, desagradável em algumas alturas, agora era
um forte aliado porque ajudava a refrescar. Mesmo assim era necessário
refrescar o mais possível e valia tudo … além de bebermos muito, aproveitávamos
cada fonte que aparecia para nos molharmos e chegamos a pedir para entrar no
quintal de uma senhora para usar a torneira dela … toda a gente que encontramos
pelo caminho foi simpática e prestável … não temos uma razão de queixa J
Uma das melhores formas de nos refrescar é comer gelados
de gelo … um sacrifício enorme para dois lambareiros como nós. Quem não gosta
de um calipo geladinho quando está um calor abrasador??? E se estiverem com
muito calor e estafados??? Melhor ainda … foi neste troço que comemos o
primeiro, logo à saída de Santarém, um espécie de sobremesa J
melhor que isto? Nada ...
Passamos Azoia de Baixo onde encontramos uns peregrinos bem
dispostos que vinham de Lisboa … “se virem um Sr. de cajado à frente avisem que
estamos a chegar”. Não fazíamos ideia do que pretendiam … uns 2 km mais à
frente ficamos a saber … no meio do nada, num corte de estrada poeirento havia
uma barraca cheia de bandeiras, camisolas e todo o tipo de lembranças de
peregrinos, barraca essa habitada por um senhor de idade … “bom dia senhor” … “bom
caminho rapazes” … “viram algum grupo de peregrinos aí atrás?” … e fez-se luz …
era este o senhor que devíamos avisar …. “sim sim, estão mais ou menos a meia
hora daqui” … seguimos o nosso caminho, o senhor Francisco teria com certeza um bom par de histórias para contar …
foto escandalosamente roubada ao Rui Pinho .. :)
A casa onde nos deixaram refrescar era numa aldeia
chamada Advagar, que era como nós íamos … chalaça óbvia … Advagar, vagar,
devagar J J J. Nesta altura eramos os últimos em prova … tínhamos saído
de Santarém muito depois do último partir e não tínhamos passado ninguém. Sem
stress, temos tempo J
Dois marcos importantes nesta fase … passamos os 100km, e
aos 101km o Nuno Lima bateu o recorde dele de distância … pétaculo J
E se à entrada de Advagar nos refrescamos com um banho de
água da torneira, à saída (uns 200 ou 300m mais à frente) refrescamo-nos com
duas belas minis geladas bebidas no único tasquinho da aldeia (pelo menos que
se visse) … quem disse que a melhor forma de refrescar em dia de calor eram
calipos? Parvo J … minis
fresquinhas é que é J … mais umas
conversas com gentes da terra, sempre simpáticos e afáveis. Um ciclista que
também faz ultras diz-nos “o abastecimento em Santos está perto … uns 3 ou 4km …
venho de lá, fui apoiar um amigo … chegam lá rápido”.
Melhor que isto? Nadinha …
Não foi bem assim … 3 ou 4 km nesta fase, mesmo correndo
nas descidas e em plano sempre dava uma meia horita.
“Nuno … óh páh … não me apetece comer. Estamos bem e devíamos
aproveitar a onda, abastecer só de líquidos e seguir para Olhos de Água … são
apenas 11km. Que dizes?”
Diz o Nuno “Claro … tb não apetece comer. Enchemos as
garrafas e siga …”
Dito e feito … mais ou menos J
Santos
– Olhos de Água (115km)
No abastecimento de Santos … “saiu daqui agora mesmo um grupo grande” … “ok,
só queremos abastecer de líquidos” …. 3 ou 4 fatias de Pizza, uma sopa, fruta e
pelo menos 3 bolos … foi o que eu comi J … o Nuno pelo
menos o mesmo … é como digo, nada como ter uma estratégia bem definida, seguir
o plano focado, com método e cumprir o que se combina como equipa J
Mais uma vez a malta do Mundo da Corrida foi 6 estrelas.
Nem sei o que dizer mais, não se explica, só estando lá.
E siga para Olhos de Água onde seria a segunda e última
barreira horária da prova … 20 horas era o limite. Tinhamos 2 horas e meia para
fazer os 11 ou 12km – tranquilo se não nos pusermos com muitas coisas pelo
caminho J
Estávamos numa fase boa … continuávamos a correr em plano
e nas descidas e só caminhávamos nas subidas. Curiosamente não doíam as coxas,
apenas os gémeos. E não tardou a ver outros atletas a nossa frente … e
começamos a passar, uns, depois outros, depois outros … era aproveitar a onda
para avançar. Era mesmo uma fase excelente e Olhos de Água estava apenas a 3 km
de distância.
Numa longa descida em alcatrão vou na frente do Nuno a
imprimir o ritmo … continuamos sem exagerar, a trote, 6 a 7min/km apenas (quem disse que não sei correr a estes ritmos???) … vou
entretido nos meus pensamentos quando me apercebo que o Nuno ficou para trás …
viro-me e vejo-o agarrado à perna esquerda … “então?” … “tou lixado do gémeo” …
ele já se vinha a queixar de uma dor no gémeo e atrás do joelho esquerdo há
algum tempo. Mas é normal, com todos estes km temos dores em alguma parte do
corpo … é gemer e seguir.
Mas ele não consegue … paramos um pouco … depois tentamos
seguir mas a coisa está complicada. É a mancar, de perna esticada e a passos
curtos que se fazem estes longos 2 ou 3 km que faltam até ao abastecimento de
Olhos de Água.
Muito difícil de gerir … vi imediatamente que a viagem do
Nuno tinha acabado ali … ele estava completamente destroçado o que é mais que normal.
Tentava mante-lo calmo … “vai à tua vida caralho” … “tás doido, vamos juntos
até ao abastecimento … depois logo se vê … tens lá massagista, pode ser que se
consiga desbloquear isso de alguma forma”
… as odds estavam todas contra mas eu queria acreditar num milagre …
foram longos estes km … fartou-se de me mandar à vida, uma das vezes até de uma
forma bastante rude … “morrer na praia, não acredito nisto” …
O moral estava em baixo na chegada a Olhos de Água … um
sitio lindo que não deu para desfrutar. A prioridade agora era ver se conseguiam
colocar o Nuno em condições de prosseguir. Deixei-o com a massagista de serviço
e fui trocar de camisola, encher as garrafas e pensar na vida … esta não estava
nos planos. Sabemos que acontece mas nunca pensamos nisso.
“CAARLOOOS!!!” … era a voz determinada do Nuno dentro de
tenda das massagens. Fui a correr …. “dá-me o teu frontal que eu vou acabar
isto nem que seja à meia-noite” … a massagista olhava para mim com ar
reprovador e eu entendi a mensagem …
Custa dizer a um amigo que o melhor é desistir … que
provas existem muitas e corpo só há um … tive que fazer das tripas coração para
o fazer. Enquanto vinha atrás dele naqueles intermináveis 2 ou 3 km já tinha
ensaiado o discurso várias vezes. Na hora saiu de forma diferente … nem sei bem
o que lhe disse, sei que lhe dei exemplos meus, a famosa Maratona de Roma com
11km por exemplo … “ninguém morre, nada tens a provar e já foi bom fazer 115km”
… tudo tretas para ele, sei bem como é. O Nuno estava bem e ia acabar a prova,
não tenho qualquer dúvida … foi um azar, algo que faz parte do jogo. Enquanto
eu fiquei na massagista a tratar do meu gémeo esquerdo, o Nuno foi sentar-se á
beira rio, enfiar as pernas na água fria com a esperança de que isso fizesse o
tal milagre.
Uns minutos depois fui ter com ele … não foi preciso
dizer quase nada … ele nem levantar em condições se conseguia. Um abraço
sentido, uma despedida dolorosa do meu companheiro de viagem, do meu amigo Nuno
… ele só dizia “desculpa, desculpa…” … desculpa??? porra … eu pouco conseguia
dizer, tinha que me concentrar para não suar dos olhos, despedi-me e segui
viagem ….
Olhos
de Água – Minde (123km)
Faltavam 30km … pelos mapas os mais complicados a nível de
altimetria e pelo que diziam com alguns troços mais técnicos, incluindo uns
single-tracks.
Era novamente o último dos que estavam em prova.
Sentia-me bem fisicamente, excluindo o gémeo esquerdo que estava a chatear um
pouco e os dois calcanhares que deviam ter bolhas gigantes – evitei banhocas
nos riachos e nunca troquei de meias porque tive medo de piorar a situação. Os
primeiros sintomas de bolhas foram por volta dos 50km, há quase 15 horas atrás.
Umas vezes melhor, outras vezes pior foi-se aguentando. Era pior a caminhar do
que a correr.
Correr sozinho foi algo novo para mim … mantive a mesma
toada com que vinha com o Nuno – continuava a correr nas descidas e planos e a
caminhar nas subidas. Rapidamente apanhei alguns companheiros de viagem que
agora só caminhavam … juntar-me ou seguir? Sem dúvida … aproveitar a onde e
seguir viagem.
Ainda tivemos outro abastecimento em Covão do Feto
(ca.120km) antes de enfrentar a maior subida de todo o percurso … trilhos mais
técnicos, muito inclinados com muita pedra … pensava no Nuno, se tivesse vindo
não ia conseguir passar esta fase. De Covão de Feto até Minde eram apenas 4km,
2 a subir e 2 a descer. Embora durinhos gostei bastante porque diversificou um
pouco a coisa … continuava é com os calcanhares numa lástima e a doer a cada passada.
A paragem em Minde foi a mais curta de todas. Apenas
enchi as garrafas mais uma vez e siga. Acabar isto rápido.
Minde
– Fátima (144km)
Faltava agora sensivelmente 1 Meia Maratona … com 10km
para subir até às eólicas e depois outro tanto para chegar a Fátima. Fácil não
é?
Não, não foi!!! Além dos calcanhares muito doridos várias vezes fiquei
com os músculos das pernas a latejar … era obrigado a parar um bocadinho para alongar sem esticar demasiado para não rasgar. Tanto sentia as
pernas a fraquejar como a seguir conseguia correr.
E foi assim que fui avançando … depois das eólicas entrei
no modo luta psicológica. É aquela fase em que sabes que falta pouco e já não
tens paciência. Esgotou!! Cada km agora demora um eternidade … os marcos com a
distância que falta até Fátima demoram cada vez mais a aparecer … e não é por
andar mais rápido ou mais lento, é mesmo porque estou sem paciência, sempre a
olhar para o relógio de 100 em 100 metros.
Hora de sacar de um táctica que aprendi em aventuras passadas …
ligo para as minhas meninas, para a minha mãe, para a Dora … tenho a sorte de
receber algumas chamadas dos amigos … só o Lobo ligou-me umas 3 ou 4 vezes nas
últimas horas.
Vou espreitando as publicações que fizemos no FB durante
o dia – outra táctica que resultou em pleno – fazer os vídeos, colocar online,
ver os comentários e rir deles durante o caminho foi uma ajuda enorme. Quando
tinha ido com o Nuno fazer Aveiro-Granja, na brincadeira surgiu a história de
ir postando os vídeos e funcionou bem – daí a aplicar nos Caminhos do Tejo foi
um instantinho. E funciona mesmo bem para quem encara isto como nós o fazemos J
Já não faltava tudo para outro marco importante nesta
viagem … quando faltavam 9km para o fim cheguei aos 135km … a maior distância
que alguma vez percorri a pé J .. por 1km
estava batido o recorde … agora cada km era colocar a fasquia um bocadinho mais
alta para o futuro J
Custou tanto chegar ver as placas seguintes, primeiro 8,
depois 7 e nunca mais chegava o 6km para Fátima. Quando vi essa placa não sei o
que me deu mas decidi correr, correr a sério … não naquele trote que utilizava
quando as pernas davam um bocadinho de tréguas.
“Csafoda … é até partir” … e abri caminho … o relógio
marcava ritmos entre os 5 e os 5,30min/km, mesmo quando o percurso inclinava um
pouco eu não abrandava. Sentia-me supersónico e não sei como, mas não sentia
dores nas pernas nem nos pés e parecia que conseguia correr assim eternamente.
Juro que não tomei nenhuma bomba!!! J
Até à placa dos 5km foi um tirinho e quando vi a placa
dos 4km para Fátima toca o telemóvel … era o Lobo mais uma vez J … caminhei enquanto atendi … quando desliguei aproveitei
e liguei à Dora e ao Nuno para os avisar que só faltavam 4km “agora vou correr”
foi a minha frase final J … e corri, corri
tipo Forrest Gump (um bocadinho mais lento, mas vocês percebem a cena J ).
Um pouco mais à frente vejo o Rui Pinho com outro colega
de aventura … “ARRUMEM-SE QUE NÃO TENHO TRAVÕES E QUERO PASSAAAAAR…” … o Rui
junta-se a mim para estes 2 ou 3 km finais que são feitos a uns supersónicos
5,30min/km, sempre a correr e na converseta o que é de estranhar, porque ambos
os dois nem gostamos de conversar nem nada J
Entramos em Fátima, passamos ao lado do Santuário
seguindo as fitas … uns 100m antes da meta tenho direito a uma surpresa … antes
das curva final aparece-me a Dora aos saltos … “com que então tinhas que
trabalhar??? Sacaninha” J … enorme
surpresa que me deixou de coração cheio. Fez os últimos metros comigo e apenas
me deixou para cortar a meta, aquela tão almejada meta. O que senti? Não sei
descrever … nem me lembro bem para ser sincero … estava lá a Dora, estava lá o
Nuno Lima a quem dei um enorme abraço … sobrepôs-se a qualquer sentimento que
tivesse tido em relação à conclusão da prova.
Isso veio um pouco mais tarde, quando tive alguns
momentos mais a sós.
Medalhinha ao peito e umas fotos para a posteridade!!!
Tempo? É pah … só desliguei o relógio já no hall do hotel
onde ia tomar banho. Só no domingo é que fui ver ao certo … 24h40 … um 19º
lugar entre 45 – só queria acabar dentro do tempo limite e consegui J
"sim mamã, vou tomar banhinho e vestir um casaco para não constipar, não te preocupes"
Banhinho, jantar e seguir para casa. Dormi quase a viagem
toda no carro. Estava estafado de sono … mazelas eram algumas, e doíam pra
caraças mas nada de grave. Daqui a uns dias fico fininho J
Tal como referi no primeiro parágrafo deste longo
testamento, sinto-me orgulhoso por este feito. Quando comecei a correr foi uma
de 3 provas que me apareceram à frente através de revistas/pesquisas na net,
que eu achava de loucos ... e quanto admirava eu esses loucos que conseguiam
fazer estas distâncias. Agora sou um deles, um desses “loucos” e já não acho
assim tão louco … a sério que não … se eu consigo, qualquer um consegue J
Esta lenga-lenga já vai longa … faltam os agradecimentos …
Começo pela organização – perfeitos!!! Os percursos são o
que são, são os Caminhos do Tejo oficiais. As marcações nocturnas estavam
perfeitas – impossível de nos perdermos. Os abastecimentos do melhor – em todos
eles havia de tudo, à escolha do freguês conforme a nossa vontade. Nada faltou.
O melhor de tudo e o que me deixou de coração cheio foram as pessoas – a forma
como nos trataram conforme já fui descrevendo no relato. Fantásticos em todos
os pormenores, do melhor que já tive oportunidade de presenciar. Muito mas
muito obrigado ao Mundo da Corrida!!!
Depois a todos vocês, que me incentivaram antes, durante
e depois da prova. Eu sou mesmo um sortudo porque foram dezenas de sms,
telefonemas, mensagens. E isso é de uma importância extrema para mim numa prova
destas. Conseguiria fazer a prova sem vocês? Talvez, mas não seria a mesma
coisa!!! Muito obrigado a todos e desculpem se deixei alguém sem resposta.
Aos meus Pernetas … viveu-se em pleno o “quando corre um corremos todos” … tive
mensagens que me deixaram os olhos a suar .. eu sei, sou um menino J
Ao Nuno Lima … tá tudo dito. A corrida deu-me muita
coisa, o melhor de tudo foram os amigos. Obrigado por tudo!!! Espero que
possamos fazer muitas aventuras juntos!!! Primeiro tens que te por bom J
Á minha mãezinha que se fartou de mandar mensagens e
telefonar … algumas pérolas habituais, mas destaco o aconselhar-me a desistir
porque estava calor J … adoro-te!!!
Por fim à Dora … longe mas sempre presente, até que cheguei à meta - Adorei a
surpresa J
E pronto … fim deste capitulo … chegaram aqui? Leram
tudo? Mereciam uma medalha J J J