Vou escrever sobre esta prova enquanto ainda tenho as
pernas tipo cepos a moldar-me a memória J … é justo que
assim seja. Que coisa mais brutal aquela vivida ontem …
Antes de mais queria agradecer à Agridoce por me ter
lembrado desta prova com um comentário num dos meus posts da semana passada.
Quando desisti de ir aos Picos da Europa foi uma das provas que ficou em cima
da mesa para se fazer, prontamente eliminada pelo facto de calhar no fim de
semana dos Caminhos do Tejo – como a escolha depois recaiu na UTDP a Serra
Amarela caiu no esquecimento até ao tal comentário … foi na 4ª feira de tarde …
fui espreitar … 48km com 2800m D+, organização Carlos Sá e no Gerês … perfeito
… inscrições fechadas mas com um contacto à organização lá se conseguiu meter
mais dois aventureiros no pelotão … bye bye treino no percurso longo do
Paleozóico, hello Serra Amarela J
Vidas atarefadas não permitiram ir de véspera para Entre
Ambos os Rios a uma dezena de km de Ponte da Barca. Quando o despertador tocou
às 5h da manhã foi como ser abalroado por um comboio, estava ferrado e num
primeiro instante nem sabia onde estava, que dia era e o que estava a acontecer
J … estava tudo preparado de véspera,
foi equipar, tomar o pequeno almoço e levantar ancora … eram 7h e estávamos a
chegar para levantar dorsal e a horita que tínhamos até à hora da partida tb
passou num ápice, entre cafezinho e últimos preparativos. “Levamos os bastões
ou não?” … “não levamos” … para ser sincero, nem me lembrei deles durante a
prova, em alguns segmentos com certeza que teriam sido uma mais valia, noutros
iriam atrapalhar. Ainda deu para conhecer a Agridoce respectiva cara metade e dar um abraço ao Filipe Torres já dentro da
box de partida.
encontro de Pernetas … a Arménia dos genéricos e eu dos verdadeiros
Uma vista de olhos rápida pela “concorrência” mostrava
que hoje não iria ter hipótese de ir ao pódio JJJ … aquilo era só
malta magrinha, todos equipados, tudo atletas
dos prós … outros campeonatos J … mas eu e a
Pikinita tínhamos objectivos delineados:
1º - acabar (seria a distância mais longa que a Pikinita
percorreu seguida numa prova)
2º - desfrutar do Gerês
3º - se possível entre as 9 e as 10h o que corresponde à
média que precisamos de fazer no UTDP
Vou dividir isto por 6 segmentos com algumas das fotos que tirei - afinal já houve quem me
chamasse de corredor/fotógrafo (não sei se com desdém ou não, mas gostei porque
até que é verdade) e tenho que justificar a alcunha – embora exista uma
diferença entre quem é fotógrafo e quem tira umas fotografias como é o meu caso
J
olhó emplastro lá atrás … ganda Xico
De Entre-ambos-os
Rios aos quatro km – o aquecimento
É a parte inicial, feita quase sempre a correr mesmo nas
pequenas inclinações … primeiro para sair de Entre Ambos os Rios para depois
entrar numa zona junto ao rio, single tracks típicos do Gerês que misturam
terra, raízes e pedras … sempre tudo muito verde, adoro o musgo que envolve e
reveste as pedras e os muros … algum congestionamento mas sem stress … temos
tempo … pouco depois dos 4km ia começar a primeira grande escalada.
Subida
a Louriça – 1250m D+ em 10km
Eu gosto de subir!!! E esta subida quase seguida foi
fantástica, muito diversificada e nada monótona. Primeiro fazemos alguns km
entre floresta, caminhos rurais em zigue zagues, algum empedrado e uma ou outra
localidade. Uma delas é Ermida onde está instalado o primeiro abastecimento aos
7km.
Aproveitamos logo para comer e encher os bidons de
líquidos. O pequeno-almoço já tinha sido há algumas horas e até ao próximo
abastecimento ainda seriam 8km sempre a subir.
Estava a suar em bica, embora não estivesse um calor
abrasador estava abafado. Também comecei logo a aproveitar as bicas e fontes
que foram aparecendo para refrescar a cabeça.
estes foram uma constante durante todo o tempo
A boa disposição reinava entre o casalito
Perneta&Pikinita, aliás posso adiantar que iria ser assim até final. Foram
muitas horas onde podem ter faltado pernas, mas boa disposição e vontade em
estar ali nunca faltaram.
Continuamos a “escalada” e pouco depois chegamos às
partes mais altas daquelas serras, mais brutas, mais pedra, mais expostas ao
tempo. Ficou mais fresco, corre uma brisa … mesmo continuando a subir já não
suo em bica.
E as vistas? Começa a parte dos horizontes longínquos, de
vistas de cortar a respiração. Maravilhoso!!!
ri-te ri-te
Ainda tivemos hipótese de correr numa zona mais plana,
passar uma zona de um ribeiro embrenhado numa floresta para depois finalmente
chegar a um dos pontos mais altos do percurso a 1350m.
e fizemos um amigo, o Ian que veio de Manchester passar uns dias ao Porto, ouviu falar na prova e toca a participar
Agora um km em estradão em terra a descer e chegamos ao
2º abastecimento, em Louriça, por volta dos 15km, onde as provas dos 48km e
33km se separam. Era a única barreira horária que tínhamos, 3h30 era o limite e
chegamos com 40min de vantagem. Tudo impecável para já.
Estivemos ali uns bons 15 a 20m … descansar um pouco,
alimentar e hidratar bem. Era esse o plano.
Agora íamos descer a Lindoso … esperava-nos 10% de
desnível negativo em 7km. Ao subir já fiquei com uma noção do que nos esperaria
a nível de piso, e fisicamente não ia ser agradável. Veremos …
Descer
a Lindoso – 700m D- em 7km
Vamos embora que se faz tarde. Soube muito bem aquele
1,5km a descer por estradão em terra. No sentido contrário passa o Ricardo
Silva completamente à vontade a liderar a prova e uns dois minutos depois o Mário
Elson com a faca nos dentes a tentar recuperar. Eram os dois primeiros que já
tinham ido lá abaixo a Lindoso e estavam a regressar – eles com 28km e nós com
16 J … ainda antes de cortar à esquerda e
voltar aos terrenos irregulares vimos mais 2 ou 3 dos primeiros classificados
mas já bastante distanciados dos primeiros.
Começava o martírio para os quadricípites … já não
bastava a inclinação, agora era o terreno aos pequenos socalcos, cheio de pedra
pequena fixa e vegetação rasteira. O meu “correr” por este tipo de sitio
limita-se aos saltinhos pequenos aos solavancos, meio a mancar. Deve ser bonito
de se ver … chego à conclusão que a caminhar não sou mais lento J … mas mesmo a caminhar obriga aos saltinhos, ao impacto
constante e às travagens. Isto durante muito tempo foi um desgaste muito grande
e comecei a sentir os músculos a arder pela primeira vez mais a sério.
Um alivio quando cortamos à direita e passamos a ter
single-track em terra por entre um “ervado” e depois nos embrenhamos num bosque
mágico. Aqui sim, deu para correr à vontade e a partir do momento em que deixas
de ter que dar aqueles saltinhos de pedra em pedra os músculos descontraem e já
não “ardem”.
Ó diabo …
Mas foi sol de pouca dura, para chegar a Lindoso voltam
os trilhos com pedra, os saltinhos e é um alivio quando finalmente se vê a
localidade onde teremos o próximo abastecimento. Lindoso assim visto de cima é mesmo lindo … ainda teremos de percorrer alguns trilhos e umas estradas empedradas
antes de entrar pelas ruas estreitas da vila … é giro passar pelas casas típicas
em pedra, os cheiros a bosta fazem
parte, há que ter cuidado em não calcar os montes que estão por todo o
lado, nas estradas, nas serras … tb fazem parte e não me incomoda nada J
Ahhh … um tanque e uma fonte a brotar água fresquinha …
tempo de refrescar novamente e meter conversa com uma velhota bem-disposta. Foi
uma risota … “vocês ainda tem que voltar? Coitados” … “ó senhora, não tenha
pena porque todos que aqui estamos vimos porque queremos, e ainda pagamos por
isso” … “aiii, mas sobe tanto” … “eu gosto mais de subir” …. “Deus me livre, eu
gosto mais de descer … boa sorte” J
Ainda antes de chegar ao abastecimento não podíamos deixar
de passar em claro esta zona de espigueiros com o Castelo lá ao fundo … um ar
medieval que como é óbvio deu aso a uma sessão fotográfica J … uns metros mais à frente, na Junta de Freguesia estava
instalado mais um abastecimento. 22km feitos.
Provavelmente o sitio onde estivemos mais tempo parados …
comemos bem, bebemos e reabastecemos de líquidos. Estava na hora de iniciar o
retorno a Louriça.
Voltar
a Louriça pelo outro lado da Serra – 7km e mais 1000m D+
O percurso é diferente do que descemos, embora tecnicamente
seja muito idêntico, só que é a subir. Eu e a Pikinita subimos bem, sempre a
bom ritmo de tal forma que vamos passar uns 4 ou 5 companheiros até ao
abastecimento da Louriça.
Enganamo-nos uma vez por irmos distraídos a olhar para as
flores campestres em vez de estar atentos a fitas. Foram apenas 200 ou 300m …
culpa nossa porque o percurso esteve impecavelmente mercado de principio ao
fim.
O calor voltou a apertar, talvez por ser em cotas mais
baixas e neste lado da serra a brisa não ser tão forte. Voltamos a suar em bica
e dei por mim a desejar “uma Coca Cola Zero gelada com gelo ou então uma fonte
de água gelada” … podem não acreditar, mas a Pikinita não me deixa mentir … nem
5 minutos depois, ali no meio do nada uma Coca Cola Zero gelada J … brincadeira … é lógico que não, mas uma fonte a jorrar água
gelada sim … coloquei a cabeça debaixo e foi tão mas tão bom J
Ao subir mais um socalco, agora numa zona de erva verde
está um fotógrafo … “ó homem … vocês só se colocam em sítios onde não podemos
correr J” … diz o fotógrafo “é para vos
apanhar em esforço, mas já agora dou-vos os parabéns … são dos poucos que
chegam aqui assim bem dispostos e a sorrir” … “é muito fácil, olhe à sua volta …”
… agradeci e seguimos viagem … todos os fotógrafos que encontramos por caminho
foram super simpáticos. Ainda não foram publicadas as fotos, mas olhando ao sítio
onde eles se colocaram vão sair fotos brutais.
E chegamos ao estradão que nos levaria ao abastecimento.
As pernas estavam pesadas mas a Pikinita queria experimentar correr por ali
acima. Ainda tentei mas ao fim de 200m comecei a caminhar, tinha a musculatura presa … ela seguiu caminho.
Apanhei-a um pouco antes do abastecimento. 29km feitos, quase 2400m D+ em 6h.
Bem bom J
Acabaram as subidas, certo?
Foi a pergunta de um companheiro de viagem. O olhar e o
sorriso malandro de um dos voluntários disse tudo … é preciso olhar para os pequenos
pormenores do gráfico. Vamos sofrer J
Louriça
– Gemil – 9km muito mas muito brutos – 400 D+ e nem sei quantos de D- (1700,
1800??? … não deve ter andado longe)
Esta parte foi brutal em todos os aspectos. Massacrados
pelas dificuldades nos 30km que tínhamos feitos enfrentamos agora um terreno
ainda mais árido e bruto. Pedra, pedregulhos, calhaus, descidas vertiginosas
intercaladas com algumas pequenas zonas planas e de vez em quando umas picadas
para ir buscar o desnível positivo que ainda faltava para os 2800m D+ anunciados.
Eram curtas estas subidas mas com as maiores inclinações de
toda a prova. Estamos a falar de escaladas, escalar de pedra em pedra usando
também os braços além de ter que fazer força nas pernocas. A progressão é lenta
e dura. Sorte o sol estar encoberto … o tempo parece estar a mudar, já se nota
uma ténue neblina que não impede que possamos desfrutar das melhores vistas do
percurso. Serras e Serras, puras e brutas J
metem respeito, mas tem medo de nós e fogem
Antes de enfrentar mais uma curta escalada a Pikinita diz
que precisa de comer qualquer coisa. "Subimos esta e sentamos lá em cima a comer…
a vista deve ser mais bonita". Assim fazemos … foram 10 ou 15 minutinhos de puro
prazer. Estar ali a contemplar as vistas, a recuperar um bocadinho.
Isso é tudo moreno???
Mais do mesmo … descidas ingremes, pedra, calhaus,
grandes, médios e pequenos, saltos e saltinhos … um massacre … nunca mais acaba de
descer … entretanto chegamos às zonas menos áridas, mais verdes e conseguimos
correr porque o tipo de trilho, agora em single-track permite.
Já se vê Gemil … muito bonito com aqueles socalcos verdes
… faz lembrar Sistelo. Para lá chegar ainda penamos um bocado.
37,5km feitos … no abastecimento está a passar a música “Alegria”
… meto-me com a senhora do abastecimento a perguntar se a intenção é deprimir
ainda mais o pessoal que chega aqui derreado. É uma risota .. ela confessa que
é grande fã de circo, e que o sonho dela é ir ver o “Cirque du Soleil” … aparece
o marido e eu digo-lhe “ouve lá páh, toca a levar a tua mulher ao próximo Cirque du Soleil” … diz ele “ fodaice, eles só vão a Lisboa e são mais de 400km, e no
dia seguinte é preciso trabalhar … eu já a quis levar ao Circo Cardinali que
veio a Barcelos mas ela não quis ir” … JJJ foi a risota
geral … uns bem dispostos aqueles dois.
Era o último abastecimento previsto … mas iriamos ter uma
surpresa. Faltavam 10km para a meta.
Paradela
– Entre-Ambos-os Rios – 6km para correr
Voltam logo as descidas, em estrada empedrada para o
Fundo da Villa. Estão 4 velhotas e um velhote a conversa à sombra.
“Boa tarde … sabem me dizer se o primeiro já passou há
muito?” … “ó rapaz, já passou de manhã” … “caraças páh, que eu ainda estava a
pensar em ganhar isto :”
Fartaram-se de rir e se lhe tivesse dado conversa ainda
hoje lá estava J
Mas agora só queríamos acabar. A Pikinita dizia que as
pernas dela já tinham vida própria. Eu sentia as pernas cansadas mas ainda
davam para correr se quisesse e o piso o permitisse, o que não era o caso.
Mais uma descida bastante técnica para passar um ribeiro,
novamente a saltar de pedra em pedra. Mal passamos o ribeiro, passamos pelo
meio de dois muros em pedra e logo de seguida mais uma picada daquelas … cum caraças
páh. Esta doeu …
Nós a subir e um casal a treinar a descer … dizem que já
falta pouco ... "depois de subir descem pelo outro lado … a 1km vão ter um
abastecimento em Paradela, que foi montado para a malta dos 23km mas que deixaram
ficar para vocês usufruírem."
foi a última "picada" a sério
visto de cima para baixo ...
Começamos a ouvir água, um ribeiro … passamos o ribeiro a
saltar por umas pedras numa pequena garganta de calhaus … escalada, misturada
com equilíbrio … ver aqui o vosso amigo, com a flexibilidade natural de um
garfo aliado ao facto de as pernas já não reagirem a 100% deve valer a pena …
acho que até pagar 1 € para um espectáculo destes era barato J … a senhora do abastecimento tinha aqui uma bela hipótese
de assistir a um circo, podia não ser o Cirque de Soleil mas acho que ia ter uma bela barrigada de riso J
Continua a descer … agora a água é em parte encaminhada
serra abaixo por uns canos de onde sai com considerável pressão …
Lá esta uma pequena localidade … é Paradela e tal como o
homem tinha dito um abastecimento que não estava na ementa.
Tinha dito à Pikinita que só enchia a garrafa de água e seguíamos
… mas tb comi mais um pouco de fruta, laranja, melancia, ananás … “quantos km
faltam?” … “4,5 … agora é só mais um bocadinho a descer e depois é tudo plano
junto ao rio.
Será?
Confirmo que a senhora estava bem informada. Pelas contas
no meu relógio ia ter um bocadinho menos que 48km.
(a partir daqui não tenho fotos … quer dizer, eu tirei … o telefone ficou sem memória e guardou-as em algum sitio que eu ainda não descobri .. sou muito azelha nestas coisas de high-tech)
Finalmente chegamos ao rio … temos que o atravessar
agarrado a cordas. Está lá um membro da organização que diz que agora é sempre
junto ao rio e que dá para correr até ao fim.
Não foi bem assim … ainda houve uma outra parte digamos que mais técnica, umas travessias
de rio, uma ou outro socalco que era preciso escalar, mas de uma forma geral
daria efectivamente para correr se houvesse pernas para isso. A Pikinita estava
com as pernas desfeitas mas mesmo assim ainda fizemos uma grande parte destes
últimos 3km a trotar.
E chegamos à periferia de Entre-Ambos-os Rios … faltava
uma subidinha em paralelos que fizemos a correr … a Pikinita “simulou” a
entrada de um mosquito no olho para que se chorasse a cortar a meta tivesse
aquela desculpa J .
E ali estava a meta … 9h52min depois …
fotos tiradas pela Agridoce ...
obrigado Agridoce
Cumprimos todos os objectivos!!!
Foi brutalmente brutal em todos os aspectos. Foi brutal ao
desfiar-nos fisicamente e foi brutal a nível de beleza. Deu-nos tareia quase de
principio ao fim, mas dava-nos energia e alento a cada espreitadela para o que
nos rodeava, fazia-nos querer ver mais e mais.
A organização esteve impecável – as provas do Carlos Sá
são caras? Diz que sim, mas normalmente são uma garantia de qualidade. Nas
poucas onde participei não notei falhas. Nota-se o saber nos pormenores, nos pontos onde
instala os abastecimentos, na qualidade dos abastecimentos onde tem tudo o que
precisei (levei géis, levei barras … não usei nada meu), no reforço oferecido
no fim (3 pratadas de massaroca bem boa enfardou aqui o vosso amigo) J ou na bela da camisola, diferente das que se oferecem
por aí.
a medalha tb é gira, é de cortiça
Eu adorei, mesmo que, olhando aos cepos que tenho no
lugar das pernas, só volto a correr daqui a uns dias … espero que a tempo de
participar no UTDP que foi para treinar para esse que me inscrevi neste J
ahhh … lembram-se do meu gráfico no inicio deste texto … a realidade foi um bocadinho difente..